História

Do ponto de vista técnico, os caminhos pavimentados com pedras remontam à Antiguidade, e Portugal herdou muitas estradas revestidas a pedra no período romano, herança a que os árabes deram continuidade utilizando pedras mais pequenas, organizadas de forma estruturada, de acordo com as suas funções. A essa técnica não está subjacente, na maioria dos casos, qualquer dimensão decorativa, mas apenas utilitária, pelo que, em português, ao conjunto das pedras assim colocadas, justapostas, e às ruas assim empedradas generalizou-se designar por calçada. A técnica de assentamento deste tipo de calçada funcional aproxima-se da utilizada na calçada artística portuguesa à qual se juntou a decoração herdada do mosaico.

Na Lisboa da primeira metade do século XIX, que se mantem uma cidade-estaleiro, com os escombros de muitos edifícios destruídos pelo terramoto de 1755 a pontuar ainda a paisagem urbana, vai surgir uma nova solução artística e técnica de pavimentação.

A noção de praça, da cidade burguesa renascida, impunha-se também por contraponto ao tradicional largo, e nela passava agora a nova vivência social, de uma sociedade que timidamente abandonava hábitos ancestrais de reclusão feminina, para permitir que as famílias de bens vissem e se dessem a ver. A fisionomia de Lisboa, durante esta primeira metade de Oitocentos, vai conhecer o início de uma transformação de tal maneira profunda que a cidade não voltaria a ser a mesma.

O espaço público passava a reclamar estatuto de continuação da esfera privada, com a proliferação, quase em simultâneo, de dois novos elementos decorativos muito têxteis que saiam dos interiores domésticos burgueses trazendo para a rua o conforto dos interiores da nova classe em ascensão – damascos e tapeçarias revestindo paredes, naperons cobrindo móveis e tapetes e passadeiras suavizando o chão – que no exterior se revestiam de uma outra natureza: o azulejo saía dos interiores religiosos e palacianos e assumia-se democraticamente e sem pudor nas fachadas dos prédios de rendimento, e a calçada-mosaico passa a atapetar passeios e praças. Complementava-os o mobiliário urbano, que deixava de ter uma função utilitária apenas para ganhar estatuto de decoração, candeeiros e bancos de ferro fundido e bebedouros para pessoas e animais, como complemento da estatuária e das fontes que, quais bibelots, repousavam sobre naperons de pedra.

Encenava-se o espaço público para propiciar o passeio e o flanar da sociedade romântica oitocentista, embelezava-se e humanizava-se zonas nobres com tapetes pétreos para receber habitantes e viajantes. A versatilidade do material permitia reproduzir graficamente o que se quisesse. A imaginação ganhou foros de alforria e a criatividade, de artesãos, artistas anónimos a par de talentos reconhecidos, contribuiu para tornar mais belo e rico o quotidiano. Ao enfeite lumínico e colorido das fachadas azulejadas, que então começam a pontuar a cidade, vai corresponder, no chão que se pisa, a luminosidade dos tapetes fantasistas, a preto e branco, das calçadas artísticas.

Na cidade são estes dois elementos decorativos que se destacam, constituindo uma marca identitária de forte intensidade. Lisboa engalanou-se assim, compensando a falta de monumentalidade. Sem eles deixaria de ser o que é.

Tal como o azulejo, para além de decorativa, a calçada-mosaico cumpre também uma função publicitária quando aposta no pavimento em frente de estabelecimentos institucionais, comerciais e de restauração ou serve também para indicar, no pavimento, o número de polícia.

Lisboa e seus arredores forneciam as matérias-primas em qualidade e abundância. O calcário branco e o basalto preto encontravam-se disponíveis dentro do território concelhio, e os materiais são sempre o que define e marca a identidade ou a alma de um lugar. Os basaltos e, sobretudo, os calcários são utilizados nas arquiteturas lisboetas. Todavia, é no chão que pisamos que se destacam.

Passou-se a diferenciar a calçada funcional, numa primeira fase exclusivamente de basalto negro irregular, proveniente maioritariamente de Monsanto, (mais tarde substituído pelo granito de outras paragens), que pavimentava as superfícies das estradas onde transitavam veículos e bestas, dos passeios, que tinham surgido na sequência do projeto de reconstrução pombalino, e de outros espaços pedonais como praças e largos, onde se contrapunha a brancura do calcário (também vindo das pedreiras de Monsanto, mas igualmente de Campolide e da Fonte Santa e mesmo de Odivelas, por exemplo) rendilhado a preto com pedra basáltica ou, posteriormente, com calcário dessa mesma cor (proveniente de Mem Martins e mais tarde de outras paragens). Porque difícil de trabalhar e por se tornar mais escorregadio com o tempo, no continente o basalto foi sendo gradualmente abandonado. A maioria dos empedrados artísticos que hoje se fazem em Lisboa e em muitas outras cidades resume-se à utilização de uma única rocha: o calcário de várias cores, embora dominem as composições a preto e branco.

O sistema das calçadas-mosaico foi concebido pelo governador de armas do Castelo de S. Jorge, tenente-general Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado (1777-1861), que é considerado o seu inventor. O gosto por este tipo de calçada lavrada, aplicado na via pública, ter-se-á iniciado quando, em 1841, o referido governador, mandou executar o calcetamento da parada militar existente no castelo, utilizando como mão-de-obra prisioneiros, conhecidos por grilhetas, dada a corrente atada ao tornozelo. Seguiu-se-lhe a pavimentação da rua de Santa Cruz do Castelo. Foi tal o sucesso que, em Maio de 1844, o município providenciou meios para a obra se estender à calçada do marquês de Tancos. O Teatro Nacional D. Maria II foi inaugurado em 1846. No Rossio, no ano anterior, havia sido imposta a interdição à circulação de veículos e cavalgaduras na placa central, condicionadas a circular na via em seu torno. Na sequência desta renovação, a Câmara deliberou o seu calcetamento em Abril de 1848. O mesmo tenente-general Eugénio Furtado propôs um desenho vistoso, de ondas pretas e brancas, o Mar largo, a ser executado pelos grilhetas do castelo de S. Jorge, que em Julho de 1848 foi aprovado. A obra, iniciada em 17 de Agosto de 1848, viria a terminar em 31 de Dezembro de 1849, com calceteiros do Município dado ter havido alguma diminuição no número de grilhetas. No ano seguinte dava-se continuidade empedrando outras praças e ruas da cidade e, em 1895, a Câmara Municipal de Lisboa tornou obrigatória a utilização de calçada portuguesa para uniformizar passeios e praças da cidade decisão reforçada depois no Plano Diretor Municipal de de Gröer (1928-1948). Claro que nem toda tinha características decorativas, sendo maioritariamente a comum calcada portuguesa branca sem desenhos. 

Algumas destas calçadas iniciais desapareceram, outras foram substituídas ou alteradas. O Mar largo, por exemplo, haveria de desaparecer em 1919. Porém, em sessão de 25 de Junho de 1979, a edilidade aprovou por unanimidade a sua reposição, embora de menores dimensões dada as exigências atuais de tráfego mas só a partir de 1995 voltaria a marcar presença na reabilitação do Rossio, obra inaugurada em 2001.

Ao período inicial dos anónimos técnicos municipais criadores de obras públicas, em Novecentos, passa-se a um período em que são convidados artistas plásticos para conceber novos tapetes pétreos, que acompanha a explosão que a calçada artística portuguesa vai conhecer, um pouco por todo o país, durante as primeiras seis décadas do século XX. Ainda na segunda metade do século anterior, a profissão de calceteiro foi ganhando relevância, como atesta a redação dos estatutos para a criação da Associação de Classe dos Calceteiros de Lisboa, em 1891, com redação final aprovada por alvará de 18 de Maio de 1893 e publicados em Diário do governo a 27 de Setembro desse mesmo ano. Esta Associação terá tido algum peso junto das instituições oficiais como atestam os diplomas de prémios atribuídos em função de obras de calcetamento artístico. Todavia, a classe parece não ter conseguido manter-se unida, por razões que ainda não apurámos, pelo que a sua associação terá sido dissolvida entre 1950 e 1960.

Todavia, há muito que a calçada portuguesa deixou de ser exclusiva de Lisboa, encontrando-se um pouco por todo o país continental e insular, mas também, e sobretudo, em países historicamente ligados a Portugal. O Brasil será mesmo o território não português onde este tipo de pavimentação ganhou mais consistência.

O lento declínio da profissão dá-se a partir da década de 1970, com as alterações políticas e socioeconómicas do país, com o aumento do custo de vida e a exigência de melhores salários. A profissão é dura, mal remunerada e de fraco reconhecimento social pelo que não cativa as novas gerações. Preocupada com a perspetiva de perder a arte, a Câmara Municipal de Lisboa foi a primeira a decidir, em 1986, criar um estabelecimento de ensino formal, a Escola de Calceteiros de Lisboa.